A demência e os nossos dias
Este post não interessará a tod@s, mas ainda assim tod@s conhecemos alguém ou alguém que tem alguém nesta situação dura e desoladora.
A ideia de escrever sobre a demência tem-me andado na cabeça nos últimos tempos. É uma das patologias da velhice com que mais gosto de trabalhar (desenvolvi, inclusivamente, um programa de formação nesta área há meia dúzia de anos), mas tenho noção que é um tema que destoa das demais partilhas que faço. Um bolo de chocolate seria mais aprazível, bem sei, mas este é um assunto dos nossos dias que precisa de ser falado, que merece destaque e empatia.
Recebi diversas mensagens e partilhas em resposta aos stories em que falei sobre este tema – de familiares, estudantes, investigadores e profissionais de saúde que têm interesse pela problemática e/ou lidam mais ou menos de perto com ela. Isto levou-me a constatar que um post deste género fazia todo o sentido. Se eu vos puder ajudar com o meu conhecimento nesta área será muito bom! Partilhem este post com quem sabem que pode beneficiar dele.
Existem vários tipos de demência. O Alzheimer é um deles. Mas não é sobre isso que quero aqui falar.
Independentemente do tipo, precisamos, primeiramente, de olhar para a pessoa com esta patologia como uma Pessoa. Às vezes, o nosso foco recai sobre a doença e esquecemo-nos da Pessoa e das suas necessidades, tais como, o sentir-se amada e ouvida – necessidades transversais a tod@s nós. Uma pessoa com demência merece ser tratada com respeito e dignidade (parece óbvio, mas nem sempre acontece).
O ser humano, todo ele, precisa de se sentir validado; uma pessoa num estado tal de vulnerabilidade tem essa necessidade, diria eu, redobrada. As suas necessidades, sentimentos e emoções (raiva incluída) precisam de ser validados. Falarei disto mais abaixo.
Nem sempre vamos compreender determinado comportamento – porque é que a Dona X insiste em crer que a almofada do sofá é a toalha que a mãe bordou? Porque é que o Sr. Y quer sair da instituição para ir trabalhar, quando está reformado há mais de 20 anos? Ainda assim, podemos aceitar (em vez de refutar) esse comportamento e tentar perceber a necessidade por trás. Podemos validar o sofrimento daquela pessoa e ajudá-la a sentir-se menos frustrada (existem técnicas respeitosas de o fazer). E não é só a pessoa que se sentirá menos frustrada; nós, profissionais de saúde e cuidadores, também nos sentiremos menos irritados.
Como deve ser doloroso uma pessoa não saber onde está, não saber onde estão os filhos (que, na cabeça dela, ainda são pequeninos), andar a vaguear pelos corredores do lar à procura do cônjuge (já falecido), não reconhecer as pessoas que lhe estão a fazer a higiene (e a limpar das partes íntimas – imaginem a exposição!) ou a tratar das feridas (as visíveis)…
Imaginemos a Sra. Z. Foi uma cozinheira de mão cheia e proprietária de um restaurante de comida tradicional portuguesa durante mais de 30 anos. Talvez não se lembre do seu restaurante…
Ou, pode ter isso tão presente na sua cabeça que continua a dar ordens de como confecionar os pratos aos residentes do lar onde está institucionalizada – provavelmente, a primeira coisa que nos vem à cabeça é que a senhora está a delirar, que está noutro mundo. E, efetivamente, ela está noutra realidade – aos seus olhos, menos dolorosa que a nossa. Está na sua realidade.
A minha forma de trabalhar nestas situações é tendo em linha de conta que o voltar ao passado pode constituir a forma de a Sra. Z restaurar a sua dignidade e amor-próprio. O trabalho foi a forma que a Sra. Z encontrou para se sentir íntegra e útil, e continuar a gerir o seu restaurante é uma forma de se sentir produtiva e com utilidade. Quem não gosta de se sentir útil e produtivo?
Poderemos, em vez de a orientar para a nossa realidade (é quase inato fazê-lo, não é?), sermos nós quem vai ao encontro da dela. E, aí sim, ficamos no mesmo barco; e a pessoa sentir-se-á menos sozinha. Percebemos, então, que a nossa realidade já não lhe faz assim tanto sentido e que há assuntos passados por resolver, simbólica e metaforicamente. Daí ela se ausentar da nossa realidade numa tentativa de os resolver. O objetivo desta resolução é aliviar a carga emocional que se foi arrastando ao longo de décadas de vida, para poder morrer em paz. E, nós, profissionais de saúde e cuidadores (formais e informais), ouvintes empáticos e genuínos, temos um papel crucial nesta fase de resolução.
Muito mais havia para ser dito, mas fico-me por aqui, esperando ter-lhe transmitido uma outra forma de ver/lidar com os comportamentos complexos da demência.
Qualquer questão, estou à distância de um email: monica.oliveira.psicologa@gmail.com
1 de maio de 2023